Acesse o novo portal do Jornal Correio da Manhã
www.correiodamanha.com.br

Cadastre-se para receber por e-mail
nossas edições em primeira mão.
Cadastre-se

Ruína de sociedade russa ganha paralelo com o Brasil de Bolsonaro em peça

Por Gustavo Fioratti/ Folhapress

Quando tinha 18 ou 19 anos, Anton Tchékhov (1860-1904) escreveu uma peça, ou melhor, não escreveu uma peça. O texto, incompleto e sem título, foi engavetado. 

Encontraram-no nos anos 1920, nos arquivos do irmão do autor de "Tio Vânia", de "A Gaivota" e de outros títulos que se tornaram fundadores de uma dramaturgia reconhecida pela singularidade e pela quebra de paradigmas. 

Tchékhov já era um morto ilustre, e seus personagens subiam aos palcos de todo o mundo dando voz a um teatro que subvertia o sentido de conflito. Suas histórias são repletas de vidas nas quais nada, ou muito pouco, acontece, com efeito trágico. As personagens de "As Três Irmãs" que o digam –sonham em ir para Moscou, mas acaba a peça e não saíram do lugar.

Texto seminal deste universo habitado muitas vezes por aristocratas ociosos - Tchékhov viveu e produziu sua obra em período imediatamente anterior à Revolução Russa–, esse trabalho inacabado ganha agora montagem da Companhia Brasileira de Teatro, grupo curitibano de longa trajetória e formador de um repertório consistente.

Para tornar essa uma obra completa, houve cortes, adaptação, mas cada palavra que restou ali pertence ao autor. 

O título é inédito. "Por Que Não Vivemos?" vem de uma frase dita pelo protagonista, o professor Platonov. Via de regra, o nome dele é que se usa no título das montagens. 

Platonov tem na veia a mesma inquietação de outros personagens da obra de Tchékhov, como Trepilov, jovem idealista de "A Gaivota". Trepilov é capaz de pressentir a corrosividade de um contexto social ao seu redor, mas a sua história termina em suicídio. 

Quando Platonov questiona "Por que é que nós não vivemos como poderíamos ter vivido?!", dirigindo-se a Sofia, uma mulher casada por quem desenvolve um afeto ambíguo de amor e amizade, o personagem parece se debater contra a imobilidade generalizada.

Segundos antes, nesta mesma cena, o personagem diz: "A ignorância prolifera ao meu redor, emporcalha a terra, engole meus compatriotas, e eu aqui sentado, de braços cruzados, me sento e fico olhando, sem dizer nada. Eu ainda sou jovem, não vejo mudança nenhuma no horizonte –e um futuro de emburrecimento, e então a morte!".

Com a passagem de mais de um século desde sua morte, é possível identificar nas palavras de Tchékhov o espírito preparatório para uma ruptura política, que ganha associação com o contexto brasileiro.

"A peça foi escrita em período pré-Revolução", diz Camila Pitanga, atriz convidada a participar deste trabalho junto ao grupo.

Para ela, a obra fala de "certa indiferença, certa anestesia, que precisa ser furada e, de alguma maneira, desconstruída. Seja você se identificando com aquelas pessoas, seja dizendo 'não quero'", afirma.

Pitanga chega a esse trabalho com a Companhia Brasileira de Teatro depois de ter passado por experiência similar: ela atuou com a Mundana Companhia em "O Duelo" (lançada em 2014), também de Tchékhov. "Bateu de novo à minha porta", diz a atriz.

"Espero que a gente esteja engendrando aqui uma revolução, que a gente possa engendrar na gente uma reação ao que vivemos, com espírito de libertação, com espírito de atuação de pensamento e de ação efetiva", diz a atriz.

Repete-se na vida de Pitanga a experiência de integrar um grupo que já tinha uma trajetória, de compartilhar um estilo de vida que ela compara à vida em família. "Não gosto de estrear um trabalho, fazer uma temporada e ir embora", diz, sinalizando que "Por Que Não Vivemos?" terá vida longa pela frente, após essa temporada no teatro Cacilda Becker.

Faz parte dessa opção por trabalhar com companhias o apreço a um sistema de produção que ela define como "horizontal", no qual os atores participam ativamente da criação não só de seus personagens, mas da obra em sua completude. O oposto seria uma hierarquia mais definida, "vertical", entre direção e elenco.

Para quem não viu ou não se lembra, Renata Sorrah participou de processo igual junto à Companhia Brasileira de Teatro, tento atuado em três produções com o grupo dirigido por Marcio Abreu - a primeira delas, "Esta Criança" (2012). 

Foram participações que projetaram o nome do grupo, espécie de prosseguimento natural de uma trajetória já madura. "Vida" (2010) e "Isso Te Interessa?" (2011) foram marcos de festivais brasileiros, e tiveram reconhecimento da crítica. O grupo, neste ponto, já tinha dez anos de estrada.

Em "Vida", Abreu já roçava a língua de Tchékhov, com personagens ensaiando para tocar em uma banda, em dramaturgia criada coletivamente pelos integrantes do grupo. Depois, em "Krum" (2015), com texto do israelense Hanoch Levin, retomou a chave de Tchékhov, por meio de personagem que retorna à sensação de uma paralisia social. 

Agora, Abreu faz associação direta entre a opção por Tchékhov e o contexto político brasileiro, com Bolsonaro na presidência. O diagnóstico, porém, não passa pelas acusações de fascismo, autoritarismo ou outras adjetivações do gênero que têm sido empregadas na vizinhança das artes cênicas. É, outra vez, a inação que interessa aqui. 

Para Abreu, "Platonov", aqui intitulada "Por Que Não Vivemos?", é seminal na obra de Tchékhov pois encontramos já em suas linhas "a ideia de um tempo de vida muitas vezes desativado", ainda que haja ali traços de dramaturgias tradicionais, como o vaudeville. 

No caso da Rússia monarquista, os conflitos agrários, a industrialização e o fortalecimento de uma classe proletária estabeleciam o contraponto à pasmaceira aristocrática. "Os valores nos quais essa sociedade estava assentada haviam ruído", diz Abreu.

A sensação de uma sociedade que ruiu, para ele, é iminente no Brasil. "Há uma espécie de evidência de uma sociedade que não se sustenta como ideia, nem como afirmação ou como prática, nem como sistemas de poder", conclui.

Magnavita

Mais Artigos

Colunistas

Mais Artigos

Nove anos depois do incêndio na Boate Kiss, o caso foi julgado em Porto Alegre. Apenas quatro pessoas foram responsabilizadas por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio

O plebiscito de 1993, previsto cinco anos antes pela Constituição, mostrou que 86,6% dos eleitores preferiam o sistema republicano e 13,4% a monarquia. Ontem, quando o presidente em exercício...

A Constituição afirma, no seu primeiro artigo, que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente. Por Alexandre Garcia

Correio Expresso

Mais Artigos